Voltamos.

18 de janeiro era o dia programado para o primeiro texto deste projeto de informação e formação sobre as migrações no Brasil, em 2021. Um texto de boas-vindas, de recomeço, retomada das atividades. Mas a pandemia do novo coronavírus é dinâmica e terminou a semana com a promessa de iniciar a vacinação no país, dias depois das imagens espantosas de uma Manaus colapsada pela inépcia governamental.

Ontem, a promessa se tornou realidade e acompanhamos emocionados a enfermeira do Instituto de Infectologia Emilio Ribas, Mônica Calazans, 54 anos, receber a primeira dose daquela que se esperava há muitos meses. Aqui, nossos agradecimentos ao Instituto Butantan, referente centro de pesquisa, e que desenvolveu junto à biofarmacêutica chinesa Sinovac uma das duas vacinas aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ontem.

*Abro um parênteses para o anúncio da eficácia da vacina pelo instituto brasileiro. Apresentada aos diretores, estava o colombiano e diretor médico da pesquisa Ricardo Palacios. Quem não viu, vale a pena conferir:

>> Acesse também: Governo de SP lança site Vacina Já para pré-cadastro da imunização contra COVID-19.

Em tempos de desconfiança do outro frente ao inimigo invisível, do afeto corporal se tornar ato de risco e da tomada das ruas – espaço fundamental da participação cidadã – em não-cidadania, não foi tamanha surpresa que imigrantes e refugiados fossem os primeiros a serem julgados e tratados como portadores de um inimigo de origem externa.

Quem está nessa condição, sabe. Durante todo o ano passado tratamos disso em alguns textos, desde o estigma contra o chineses quando o vírus era ainda local, até o drama psicológico de enfrentar o distanciamento físico também no lugar de morada. As barreiras sanitárias construídas pelos Estados-nação e os regimes de exceção fronteiriços que ameaçam permanecer parecem fazer da pandemia o projeto de distanciamento das alteridades por tantos desejada. Só para se ter uma noção do entrave produzido pela pandemia, o país recebeu 75% menos imigrantes regularizados entre janeiro e agosto de 2020 comparando-se com o mesmo período de 2019. O cenário justifica, embora também mantenha a apreensão sobre o futuro relacionado ao direito de mobilidade.

Foto: Nacho Doce/Reuters

O Relatório Anual do OBMigra 2020 informou que o fluxo de estrangeiros nas fronteiras brasileiras diminuiu pela metade entre janeiro e agosto de 2020, comparado ao mesmo período do ano anterior. Entre as maiores quedas estão os venezuelanos, com 70% de fluxo reduzido. A menor queda se deu entre argentinos, com cerca de 40% de deslocamentos a menos. Avaliando os dados, é perceptível que a redução tenha sido maior entre imigrantes e candidatos a refúgio do que turistas, sinal já manifesto pela diferença de tratamento entre as fronteiras terrestres e aéreas. Entre os registros de migrantes regulares, a queda foi maior entre os chineses (93,2%) – os mais afetados em xenofobia – e os bolivianos (91,2%), enquanto os venezuelanos tiveram queda de 72%. Cabe lembrar que foi um ano de poucos registros (pouco mais de 23 mil), ainda de maioria venezuelana.

Volto rapidamente à portuária Manaus. A capital amazonense se tornou rota de imigração durante a última década, especialmente com haitianos e venezuelanos fixados pela facilidade de chegada a uma grande cidade brasileira. Nesses dias, enquanto a crise do oxigênio estourou, o Estado venezuelano se dispôs a contribuir no abastecimento desta matéria-prima da vida mesmo com o fechamento mútuo das fronteiras e a relação hostil entre seus governos.

Agradecimento do governador do Amazonas para a Venezuela.

É, de alguma forma, o ensinamento de que precisamos uns dos outros. A Venezuela era mais lugar de destino do que saída há uma década. Hoje, o Brasil intercala sua identidade migratória. Embora o imaginário remeta às chegadas estrangeiras, há mais conterrâneos fora do país, caracterizando-nos como país de emigração. Por ora, ainda sem refugiados pelo mundo.

A pandemia nos colocou todos como estrangeiros. Na suspensão da certeza sobre o futuro e no contato tímido com o outro. O início do seu fim, horizonte possível apenas com tratamentos cientificamente válidos, até agora apenas a vacina, dá a esperança de recomeço. É como se estivéssemos chegando a um novo território, com coisas a (re)conhecer, objetos para interagir e redes para se fortalecer. Nisso, todo migrante pode ensinar o nativo.

A verdade é que 2021 inicia agora, quase três semanas após a virada do relógio. O novo ano só acontecerá com a vacinação, que chega primeiro aos profissionais de saúde, idosos, indígenas e pessoas com comorbidades. Imigrantes e refugiados estarão presentes, em quais etapas lhe couberem porque a vacinação gratuita é um direito concedido do Estado brasileiro a todos os seus viventes.

Otávio Ávila
Editor do oestrangeiro.org e pesquisador do Diaspotics