Por causa de sua presença na Península Ibérica por cerca de oito séculos, os árabes influenciaram enormemente a cultura brasileira desde a colonização. A partir do final do século XIX, com o declínio do regime escravista, o Brasil passou a receber fluxos migratórios significativos do exterior. O maior polo de atração foi o Estado de São Paulo, fruto das necessidades de mão de obra reclamada por uma economia cafeeira em expansão. Muitos imigrantes também acorreram para outras regiões, desde o sul do país, o Rio de Janeiro (capital federal até 1960), Espírito Santo e até Estados da região amazônica, onde a produção de borracha também os atraiu. Em meio a portugueses, italianos e espanhóis, que constituíram os grupos majoritários, figuraram também os árabes.

Por árabes, referimo-nos aos imigrantes de origem síria e libanesa, em sua maioria cristãos. A imigração de grupos muçulmanos, de mesma origem e também palestina, igualmente ocorreu, mas em muito menor grau e somente a partir do final dos anos 50 do século XX.

Embora muitos tenham sido atraídos pelo vigor da economia cafeeira paulista ou do ciclo da borracha na Amazônia, os árabes raramente abraçaram atividades agrícolas. Este constituirá o primeiro traço marcante: a inserção preponderantemente urbana dos árabes, que se dedicaram a atividades comerciais na nova terra. De fato, o comércio – não o graúdo, dos comissários de café, mas o de gêneros de consumo mais popular – foi o meio de vida inicial por excelência dos árabes no Brasil. A tal característica se sobrepôs à designação de turcos, impropriamente atribuída. Na verdade, na época em que emigraram, os turcos apenas dominavam a região de onde se originavam os sírios e libaneses, de modo que os indivíduos que daí partiam apresentavam nos países de chegada passaportes turcos.

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Esta inserção urbana, que não engrossava as levas de colonos trazidos para trabalhar no café, e mais a percepção de que os árabes não se encaixavam perfeitamente como europeus brancos na depuração racial almejada pelas elites nacionais, acarretou algumas vezes apreciações adversas a respeito da imigração árabe. De qualquer modo, tais controvérsias e preconceitos pouco impediram uma ascensão socioeconômica vigorosa.

As trajetórias no comércio, de modo geral, se iniciaram pela atividade de mascate, que representava uma das opções urbanas disponíveis àqueles que chegavam sem recursos significativos ao Brasil. Embora constituísse uma atividade simples, o mascate tinha a vantagem de ser dono de seu próprio negócio, mesmo que este fosse tão pequeno a ponto de caber em um baú, caixa ou mala.

O mascate contava, desde o início, com uma rede de conterrâneos ou parentes que o acolheu inicialmente, facilitando sua inserção socioeconômica, fornecendo mercadorias, crédito e outras facilidades, como conhecimento acerca da nova língua, de como era possível legalizar documentos, fazer negócios, de onde residir, de como encaminhar os filhos à escola etc. Inicialmente, tais laços eram tecidos na base da confiança, muitas vezes alicerçados sobre laços de parentesco ou conhecimento mútuo de famílias ainda na terra de origem.

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Aos poucos, depois de conhecer e angariar determinada freguesia, o mascate acabava se estabelecendo com uma pequena loja, usualmente no ramo de armarinhos. Esta, por sua vez, poderia prosperar para um comércio mais graúdo, por atacado, e às vezes se converter em uma empresa industrial. Assim, de modo geral, podemos dizer que tais circunstâncias, aliadas às características do vigoroso crescimento do mercado urbano em todas as capitais do país, favoreceram a inserção de árabes como comerciantes.

Muitas trajetórias de imigrantes árabes seguiram este padrão de mobilidade: mascate/varejo/atacado/indústria, muito embora poucos tenham logrado cumprir a sequência até o final, ao cabo de apenas uma vida. De qualquer modo, havia um caminho claro a ser perseguido, à custa de uma existência frugal, parcimoniosa e, sobretudo, de um trabalho intenso, que contava com o engajamento de toda a família no negócio, tão frequentemente manifesto na associação entre lar e empresa ocupando o mesmo imóvel.

Graças a esse tipo de inserção dedicada ao comércio popular, os árabes fixaram na sociedade uma imagem característica, de hábeis negociantes. Com eles, era preciso estar vigilante, para não ser presa fácil. Era necessário pechinchar, “chorar” no preço, para se conseguir um bom negócio. Compreensível, pois o comércio em si, exercido por qualquer grupo étnico, sempre constituiu uma atividade que abrigou certa suspeição, de lucros fáceis, de se vender por muito o que se comprou por pouco, etc.

Não obstante, havia também uma apreciação positiva, pois se reconhecia que os “turcos” popularizaram uma série de práticas comerciais – como o crédito, as promoções, os descontos em função do volume adquirido, entre outras. – que, sem nenhum favor, verdadeiramente revolucionaram o comércio popular. Inauguraram métodos comerciais ousados, que tornaram possível o consumo de bens populares por camadas de pouco poder aquisitivo. Importa também notar que sua presença em áreas rurais era também muito bem-vinda pois, ao mesmo tempo em que traziam as mercadorias e novidades das capitais, muitas vezes logravam vender mercadorias a preços menores que comerciantes já estabelecidos.

Duas outras características revelaram-se também comuns entre os árabes. A primeira foi a determinação de perseguir a ascensão social de seus filhos pela educação, em particular reunindo condições para que os homens, sobretudo, pudessem se formar como doutores.

Em segundo lugar, espacialmente, os árabes partiram de aglomerações centrais nas capitais brasileiras, adequados ao comércio popular. Assim, em São Paulo concentraram-se nas imediações do Mercado Municipal, tomando por eixo as ruas 25 de março e Florêncio de Abreu. No Rio de Janeiro, no próprio centro carioca, convivendo inclusive, junto com outros grupos, em uma associação própria, a Saara (Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega). Mas não pararam por aí e foram se espalhando aos poucos por bairros populares. Além das capitais, os árabes se distribuíram por regiões e municípios do interior do país. De fato, é comum a apreciação de que no Brasil, em qualquer buraco, existe “turco com lojinha”. E, não raro, tais estabelecimentos comerciais, localizados próximos a praças ou igrejas, foram dos mais importantes em cidades do interior, o que conferia certa centralidade e inserção social privilegiada a seus proprietários.

Tal enraizamento profundo em nossa sociedade, aliado ao título de doutor obtido pela primeira geração, credenciou muitos descendentes de sírios e libaneses a postular cargos públicos. Por causa disso, a partir da década de 1950, tiveram grande facilidade em se lançar em carreiras políticas. Avaliada como um todo, a imigração árabe ao Brasil constitui um dos elementos mais vibrantes do rico panorama étnico-racial nacional.

Oswaldo Truzzi (UFSCar)

(Pre-Univesp – Dezembro 2012 / Janeiro 2013)