No sábado (7), o antropólogo Hermano Vianna escreveu para a Folha de São Paulo uma coluna que me instigou a voltar a um tema pelo qual já havia dado atenção : a circulação de conhecimento promovido pelo trânsito humano. Sem tratar de intelectuais acadêmicos, como fiz anteriormente, Vianna apresenta um leque de referências culturais e artísticas que resulta, por exemplo, na impossibilidade de descrever o melhor da identidade britânica sem considerar nos dias de hoje os artistas de origem africana.

Com referências prévias à atualidade, como o clássico filme Touki Bouki – A Viagem da Hiena, do senegalês Djibril Diop Mambéty, ou do álbum Immigrés, do seu conterrâneo Youssou N’Dour, Vianna explora as novas gerações de artistas que redefinem a cultura dos centros globais. É o caso do rapper britânico Stormzy, de ascendência ganesa e que vem colecionando prêmios na música, ou da estonteante escritora Chimamanda Ngozi Adichie que traduz a vida migrante com rara capacidade subjetiva.

O fim da coluna é um chamado: “Imigrantes: poucas e preciosas pessoas. O Brasil precisa sempre renovar as boas vindas para as populações angolanas, bolivianas, coreanas etc. que aqui chegaram recentemente”.

Sabemos que a realidade é favorável à migração e não o contrário?

Esta é uma pergunta a ser feita em qualquer conversa de bar porque a migração é comumente percebida como matéria extra em um cesto cheio. Lá está a sociedade, com um limite que, se ultrapassado, estoura. Ao contrário, prefiro perceber as sociedades como o próprio cosmos, em constante expansão, mas que por não ser independente como ele, responde a processos humanos que transformam, pluralizam, redefinem e amplificam seu tamanho. Afinal, se a questão fosse puramente numérica, como encher uma cesta onde cabem apenas autóctones, seria óbvia a relação social umbilical entre densidades populacionais e desemprego.

Em um artigo, também publicado no oestrangeiro.org, falamos do Migristão como a hipotética nação migrante. Os cálculos sugerem que ela teria um PIB maior que o da França, tamanha a produção e fluxo de riquezas que, por vezes, só existem porque há migrantes para produzi-las como sustento das grandes economias capitalistas.

A expansão da sociedade se dá por diversas formas circulantes de produtos culturais, mercadológicos e políticos que redimensionam as fronteiras pela globalização, embora nela exista uma ambivalência que restringe movimentos globais em detrimentos de outros.

Circulação de conhecimento no Brasil: contribuição migrante

Apesar dessa ambivalência – bem discutida por Mezzadra[1] – que estabelece quem pode e deve ter livre movimento, a expatriação foi origem da expansão do conhecimento científico e cultural em boa parte do mundo. Num livro cheio de informações como Perdas e Ganhos (2017), o historiador Peter Burke destaca a desprovincialização ocasionada pelas diásporas, que se confundem com a história da humanidade, elencando as contribuições de centenas de exilados nos países de destino nos campos das ciências, do jornalismo e da literatura.

Burke foi professor visitante da USP na década de 1990 e fez algo raramente produzido por autores europeus ao tratarem do processo de conhecimento global: dar ao Brasil um lugar especial de análise, como a contribuição da “missão francesa” de 1934 no modelamento do ensino superior e cujo grupo participavam Claude Lévi-Strauss, Ferdinand Braudel e Roger Bastide.

Além deles, destacaria o menos famoso Henri Arbousse-Bastide por dois motivos: primeiro, porque seu homônimo confundiria os brasileiros até eles se tornarem aqui “Bastidinho” e “Bastidão”, respectivamente, por ser Roger um homem menor e Henri, grande (o que é inevitável dizer: “muito brasileiro isso!”); segundo, porque Arbousse-Bastide proferiu uma aula-magna sobre “o que o Brasil me ensinou” e nela o autor explora o aspecto subjetivo do encontro com a diferença pela qual o migrante tem olhar astuto. Uma das partes que chama a atenção é a lembrança do alongado trânsito ao Brasil:

“O Brasil, acima de tudo, é um corpo espantoso dentro de um espaço cujas dimensões escapam à própria imaginação. Meus primeiros contatos com este país foram marcados, extraordinariamente, pela mudança no espaço, sobretudo ao nível daquilo que imaginava conhecer. Nos tempos longínquos dos anos 30, a viagem da Europa para o Brasil ainda se fazia de navio. Era uma bela aventura que as novas gerações não têm tanta oportunidade de viver. A travessia do oceano demorava cerca de vinte dias. Os passageiros, pouco numerosos, tinham a oportunidade de melhor conhecer seus companheiros de viagem, de contemplar o oceano, de observar o céu com suas estrelas. Os grandes momentos foram marcados pela passagem do equador e pela mudança da constelação sideral. Esta foi muito mais impressionante que a passagem da linha equatorial, mera abstração cartográfica. O equador não é visível senão nos mapas. Era o comandante do navio que anunciava aos passageiros, no diário de bordo, o dia e a hora da passagem da “linha”. Celebrava-se o momento dessa passagem com festas alegres, bailes à fantasia e o ritual cômico de batismo dos passageiros, com a entrega solene de um documento devidamente carimbado” – Henri Arbousse-Bastide. O que o Brasil me ensinou, 1984, p. 334.

Além desses pesquisadores, outro que narrou a terra de migração foi Stefan Zweig, que inspirou a produção do filme O Grande Hotel Budapeste (2014) e escreveu o clássico Brasil, um país do futuro (1941), cujas experiências da tragédia do Holocausto e das guerras fomentaram uma visão otimista do país tropical como nação pacífica e de um horizonte humanista a se alcançar.

Stefan Zweig (1981-1942)

Tanto Arbousse-Bastide quanto Zweig tratam daquilo que é um desejo humano: saber qual conhecimento circula sobre nós fora do campo particular de domínio. Neste sentido, a presença dos migrantes tem potência mediadora e esclarecedora por oferecer aquilo que Burke chama de big picture, ou seja, a capacidade de uma visão mais ampla do contexto por não pertencer a ele originalmente. O mesmo disse Georg Simmel[2] nas “digressões sobre o estrangeiro” e no esforço deste pela objetivação. Em síntese, ninguém melhor para “falar umas verdades” para nós do que alguém supostamente neutro. E nós adoramos isso, não à toa, avaliações sobre o Brasil, seus costumes e diferenças culturais são categoria popular entre os youtubers migrantes – se marcadas as transversalidades étnicas que definem a aceitabilidade ou não da crítica.

A produção cultural a que se refere Vianna

Interessante pontuar que a influência estrangeira no Brasil serviu também como identificação nacional de um produto à brasileira. A publicação de Tristes tropiques (1955), de Levi-Strauss, precedeu filmes de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, que buscavam uma imagem original do país, diferente da antropologia europeia sobre os indígenas e sertanejos brasileiros. Mas o inverso também aconteceu, com a experiência do olhar estrangeiro ocupando a cena cinematográfica, como retratado no trabalho da diretora Tizuka Yamazaki e seus filmes Gaijin (1980 e 2005) sobre a imigração japonesa, além do emocionante Iván (2015), de Guto Pasko, que acompanha a visita do senhor ucraniano à sua terra pela primeira vez após deixá-la em refúgio.

Iván Bojko em cena do filme “Iván”, de Guto Pasko.

Hoje, a presença da migração no audiovisual dá destaque aos desafios enfrentados pelos migrantes provenientes do sul global e realizado, em maioria, por cineastas brasileiros. Na música, há pouca presença estrangeira, exceto pelo que nos já é externo como resultado da globalização cultural, mas não podemos esquecer que o samba, ritmo símbolo da brasilidade, é resultado das misturas dos cultos afro-brasileiros com a polca, a habanera e outras danças externas, como lembra Lira Neto[3]. O que evoca ao convite de Vianna a abrirmos as portas aos migrantes, não apenas porque necessitam, mas porque precisamos deles.

Outras referências não citadas:
[1] MEZZADRA, S. Derecho de fuga: migraciones, ciudadanía y globalización. Madrid: Traficantes de Sueños, 2005.
[2] SIMMEL, G. Digressions sur l’etranger, 1908.
[3] NETO, L. Uma história do samba: as origens. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.